floquinhos

segunda-feira, 30 de março de 2009

CRONICAS DE MINHA INFANCIA (18)


MEU TIO


“Que el mundo fue y sera una porqueria
Ya lo sé...
¡En el quinientos seis
y en el dos mil también!
Que siempre ha habido chorros
maquiavelos y estafaos,
contentos y amargaos,
varones y dublé...”

Assim começa a letra de Cambalache, um tango que trago em minha memória associado à presença de um tio muito querido. Quando, nas reuniões de família, pedíamos a ele que cantasse, ele abria uma voz límpida, forte, afinada, enchendo a sala com os irreverentes versos desse tango criado na primeira metade do século XX mas ainda muito atual no despertar do novo século.
Meu tio Antonio era o irmão caçula de meu pai e sempre foi boêmio, amante das coisas boas da vida, incluindo-se aí belas mulheres. Freqüentador assíduo dos cabarés da época, bonito, muito bonito, trazia a sensualidade no olhar, no sorriso alvo, nos gestos. As mulheres derretiam-se diante dele e ele, claro, não se fazia de rogado. Bem falante, elegante, vestia-se com apuro, enfim, “um pecado de homem”.
Ninguém entendia muito o casamento dele com a Tia Maria, que era, a bem da verdade, a bondade em forma de mulher. Todos nós a queríamos muito bem e a forma como ele a tratava revoltava toda a família, mas o que tinha em bondade, ternura, faltava-lhe em beleza, em presença. E isso incomodava bastante seu marido. Nascida e criada no bairro do Brás, entre imigrantes italianos, trazia aquele sotaque arrastado, pronuncia incorreta, palavras trocadas, enfim, completo oposto dele, tão cioso de sua bela presença. Mas certamente, e apesar de tudo isso, ele sempre teve um amor imenso por ela. E como deixar de amar tão doce criatura? Sair com ela, porém, exibi-la para os amigos, isso ele não poderia fazer... Contradições... Terríveis contradições.
Assim como nós, toda a vizinhança aprendera a querer bem minha doce tia e quando saia para as compras ia parando em portas e janelas, cumprimentando uns, tirando dois dedinhos de prosa com outros, tornando a simples obrigação das compras um agradável passeio matinal. E quantos conhecidos, quantas amigas!...
Numa determinada Sexta-feira Santa, não se sabe porque cargas d’água, ele resolveu acompanha-la à Procissão do Senhor Morto. E naqueles tempos, a igreja católica era soberana, a população participava dos cultos e dos ritos, as crianças vestiam-se de anjo, lindo anjos em suas batas longas, ostentando asas brancas nas costas e aureolas na cabeça; os jovens eram os apóstolos de Cristo, e havia ainda as três Marias e a Verônica. Ah! A Verônica! Sempre uma voz maviosa que todos ouviam embevecidos enquanto ela desenrolava aquele pano com a figura do rosto de Jesus estampado no que, nós crianças, achávamos que fosse Seu próprio sangue. E lá ia minha tia, toda orgulhosa, apoiada no braço do marido, rezando ou cantando, conforme o momento pedisse, mas... a todo o momento precisava interromper sua reza para cumprimentar um conhecido? Uma amiga?
- Boa noite D. Júlia, este é o Antonio, meu marido...
- Oi, Seu João, o senhor conhece meu marido?...
- Ah, D. Mafalda, hoje meu marido veio também...
E assim foi caminhando e meu tio cada vez mais irritado. Onde já se viu uma coisa dessas? Era um ato religioso ou não? Será que ele nem podia se concentrar na oração? (difícil acreditar que ele estivesse preocupado com as orações, mas, em todo caso...). Querendo acabar com aquele “oi, como vai? Prazer é meu? Olá, boa noite D. Filomena...” virou-se para a mulher e exclamou:
- Mas você conhece todo o mundo? Só falta dizer que conhece também o padre!
Exatamente nesse momento, uma figura atravessa a multidão e diz:
- Boa noite, Dona Maria. Que bom que a senhora veio...
Ao que ela respondeu:
- Boa noite, Padre Antonio, o senhor já conhece meu marido?

(Do livro "Encontro com a menina que eu fui"


2 comentários:

Lourdes disse...

Olá Dulce.
Muito engraçados estes seus tios . A Dulce deve ter passado uma meninice bem divertida. Não admira que tenha tantas histórias para contar com as quais nos vai deliciando.
Bjos

UBIRAJARA COSTA JR disse...

Olá, Lourdes,
Tive mesmo uma infância muito alegre, divertida. Éramos uma família de poucos recursos, mas tinhamos muita alegria e muito amor e isso nos unia muito.
Beijos